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O Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital), de Campinas (SP), realizou um seminário em novembro, com o tema “Biodiesel e coprodutos”. Das nove palestras programadas, três trataram diretamente da glicerina. Cinco pôsteres também revelaram preocupações e alternativas para o uso do subproduto. O evento reuniu representantes do governo federal, pesquisadores e profissionais da cadeia biodiesel.

A glicerina, mais lembrada por compor sabonetes e a dinamite de Alfred Nobel, é o principal subproduto da fabricação do biodiesel. Incolor, inodora, viscosa e adocicada, é também usada em alimentos, por isso apresenta riscos à saúde humana e animal caso não venha de uma oleaginosa adequada ou não tenha tratamento adequado e não seja aplicada com cautela. Ela está presente como ingrediente declarado ou não até em uma inofensiva barra de cereais. Uma das consequências é a diarreia, que surge pelo efeito laxante semelhante ao do óleo de rícino. Carnes de animais que consumiram rações com glicerina impura, procedentes do óleo de mamona (rícino) ou de pinhão-manso, também são problema.

Tradicionalmente extraído de óleos vegetais e gordura animal, o glicerol - nome técnico - está abundante no mercado com o aumento da produção, no Brasil, do biodiesel. A capacidade produtiva cresceu tanto que o governo antecipou a mistura do biocombustível ao diesel mineral de petróleo para 5% já em 2010. A previsão anterior era para 2013. De cada tonelada de óleo vegetal transformada em biodiesel, cerca de 10% resultam em glicerina com diferentes graus de pureza.

Para Roseli Ferrari, bióloga pesquisadora do Ital e organizadora do evento, “a glicerina é um substrato versátil, que pode ser convertido em numerosos bens de consumo, e novas aplicações com qualidade são necessárias, pois são fator importante de segurança alimentar e vigilância de riscos”. A pesquisadora ainda alerta: “Quando você lê a tabela de nutrientes de um alimento, leia também os ingredientes que o integram”. Ela cita como exemplo um rótulo de barra de cereais onde se encontra a palavra glicerina, “aditivo que adora água”, como umectante.

“Com quase uma centena de empresas hoje fabricando biodiesel e glicerina, com diferentes graus de pureza, a vigilância é importante, porque se a glicerina apresentar níveis altos de ácido ricinoleico, uma diarreia pode surgir. Alerto porque já são usadas diferentes matérias-primas para o biodiesel. Se fosse glicerina só de soja, que é um alimento, não haveria grandes problemas, mas hoje temos a mamona e o pinhão manso, por exemplo, e o que sobrar de mono e triglicerídios do processo de transesterificação vai virar ácido ricinoleico, o conhecido óleo de rícino, com efeito laxativo. Se o animal se alimentar de um produto com essa glicerina, também vai sofrer o mesmo efeito”, diz Ferrari, lembrando que apenas revistas especializadas em biodiesel já trataram do assunto. Segundo relatório deste ano da Organização Mundial da Saúde (OMS), a diarreia é a segunda doença que mais mata crianças no mundo, só perdendo para a pneumonia (16% versus 17%).

No mercado, há glicerol com grau de pureza de 40% a 90%, segundo Ferrari. A diferença está principalmente para água ou etanol e metanol. Estes dois são os álcoois usados no processo de transesterificação a partir do óleo vegetal ou da gordura animal, como o sebo. “Felizmente, em minhas pesquisas, não achei metais pesados, como o chumbo e o mercúrio”, completa a pesquisadora.

Um quarto de toda glicerina purificada é hoje utilizada em alimentos e bebidas, principalmente como umectante e amaciante; 50% em cosméticos e medicamentos, e os restantes 25% em resinas e outras aplicações químicas, entre elas a dinamite.

As empresas de biodiesel dependem de uma autorização oficial e especial para fabricação, exigida desde 2007. Para comercialização, as autorizações começaram a ser dadas no fim de 2008. Das 60 empresas autorizadas a produzir, 54% são pequenas e, destas, metade ainda não tem autorização para comercializar, mostrou um quadro preparado para o seminário do Ital.

Em sua palestra, a química e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Márcia Martinelli, disse que a glicerina “não é encontrada livre na natureza e pode ser isolada também de modo sintético, na rota petroquímica”. No entanto, enfatizou que após o biodiesel, a glicerina tornou-se um problema, que também é econômico: “Fábricas dessa rota estão fechando no hemisfério Norte com a superoferta após o crescimento do biodiesel. No Brasil, em 2008, produziu-se 100 mil toneladas de glicerina; para 2010, espera-se 250 mil toneladas”. Ela explicou que os preços internacionais caíram 50% desde 1995, de US$ 1,55 o quilograma para os atuais US$ 0,75, em média.

Perguntada se a glicerina estaria se tornando um patinho-feio do biodiesel, chegando a causar problemas ao meio ambiente em casos de descarte inadequado, Martinelli responde que “todo descarte é um problema”, mas que o glicerol não seria descartado, pois tem um potencial muito alto para a indústria química, para inovações em produtos. “A solução para o excedente seria exportar mais, e não apenas como matéria-prima, mas em bens manufaturados e ‘verdes’, como os polímeros”. Ela explicou também que ainda não é possível quimicamente reduzir a menos de 10% a glicerina procedente da fabricação do biodiesel.

Ante a mesma questão do descarte, o pesquisador da Embrapa e da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, Décio Gazzoni, defendeu o valor da glicerina, apesar da queda de preços: “Ninguém vai jogar ovo fora”. Mas emendou: “Em dois anos o mercado se acomoda”.

Pedro Boscolo, da indústria química Quattor, reconheceu que o excesso de glicerina pode tornar-se um passivo ambiental excedente. Mas tem boas notícias vindas da empresa que representa e onde busca novas aplicações. “Por muito tempo, se sintetizou glicerina de propeno (um derivado de petróleo muito usado nos plásticos), mas encontramos a rota inversa, o propeno de glicerina, que já tem nome comercial: PP-Verde”. PP é a sigla do polipropileno dos copos descartáveis. O próximo passo é fazer com que o PP-Verde tenha um preço mais competitivo.

Por Nivaldo Amstalden

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